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Mesura e desmesura em Heidegger

O ponto de vista ético

Irene Borges-Duarte[1]

Gibt es auf Erden ein Mass?

Es gibt keines.

Dificilmente poderia ser mais motivadora a pergunta que nos serve de mote.[2] Medida e desmedida são núcleos conceptuais abrangentes e polifónicos, que podem introduzir diferentes abordagens e permitir apresentar uma interpretação global do pensamento de Heidegger, tanto quanto desenhar aspectos particulares da sua leitura do que, a partir de 1936/1938, chamou a História do Ser. O que vou tentar aqui é um compromisso (algo arriscado) entre uma perspectiva global e um aspecto particular. A interpretação de fundo surge do trabalho sobre textos de diversos momentos do percurso heideggeriano, com especial atenção à produção tardia, especialmente à dos anos 50, mas sem a desconectar da ontologia hermenêutica do Dasein e da arquitectura da História do Ser, nos Beiträge. A questão particular deriva do diálogo com a tentativa, de certo modo inglória, que Werner Marx levou a cabo (Marx, 1986), ao procurar edificar uma ética pós-metafísica sobre a base dos acenos (Winke) lançados por Heidegger nas suas obras.

Parto de uma ideia orientadora, que é a seguinte:

Enquanto a Modernidade desenha a figura da sua autoconsciência como ratio e mensura, Heidegger compreende o ser humano basicamente a partir da figura grega da hýbris trágica. A sua tese, bem conhecida, da essência da verdade no mundo da tecnologia avançada como Ge-stell é o mais claro testemunho da culminação desse processo, na época da maquinação cibernética e da desmesura, que poderíamos chamar «titânica», quer pela sua ambição, quer pela dimensão do seu possível fracasso.[3] A visão de Heidegger está, porém, mediatizada pela leitura de Hölderlin, cuja meditação ele defende que cria uma ponte com a experiência originária do mundo, ainda presente no paradigma helénico.[4] Ora, para lá da experiência trágica, tão central na produção do poeta germânico, surge nele um especial alento para a superação do desalento trágico: uma experiência da desmesura humana em sentido positivo, capaz de fundar um «habitar poético» sobre a terra. Com esta base, procurarei caracterizar a minha decisão interpretativa e atender à sua possível repercussão na edificação duma ética. De haver em Heidegger um fundamento para a ética, como quer Werner Marx, ela seria a dum sereno abandono ao ser que, em vez de procurar controlar (cf. Hans Jonas)[5], esquivasse o processo impositivo da civilização – porém imparável –, mediante um des-viar-se da via metódica da modernidade e do seu ideal de progresso. Esta ética não tem alcance público (cívico ou político), como quereria Hannah Arendt, mas estritamente privado e não é, no fundo, senão um caminho de iniciação a uma beata vita de alcance e características sempre, em qualquer caso, próprias, no sentido em que o jovem Heidegger descrevera a Jemeinigkeit. Penso, pois, que qualquer tentativa de procurar dar-lhe continuidade numa ética normativa, à maneira tradicional, estará necessariamente condenada ao fracasso, mesmo no caso de um meio-termo, como o que Werner Marx procura encontrar.

Este último, consciente da sua dívida para com o mestre, mas também da inconclusividade das suas formulações para a fundação duma ética, procura encontrar-lhe uma saída enquanto

re-fundação de uma Ética do próximo [Nächsten-Ethik] que constitui a condição de possibilidade não só de uma ética social, mas também de uma ética da responsabilidade pelo remoto [Fernverantwortung] e do compromisso com uma tutela leal [Treuhänderschaft] para com a Natureza (Marx, 1986: 10).[6]

Esta proposta, hoje quase esquecida e de escassa repercussão mesmo no seu momento, parte da herança heideggeriana como de um desafio, para investigar o que é que, no nosso mundo secularizado e descrente de quaisquer valores estáveis, pode servir de fonte, critério ou modelo para um comportamento ético. Nessa aventura, serve-lhe de guia a interrogação de Hölderlin, que aqui também fizemos nossa: «há na Terra uma medida?». Mas, ao invés de Hölderlin, que responde negativamente à sua própria pergunta, Marx desenvolve, na sua obra de 1983 – decerto a mais investida da sua trajectória como pensador –, a hipótese de haver uma medida: a da experiência humana da sua própria mortalidade, que se traduz afectivamente na prática do amor, da compaixão e do reconhecimento dos outros. É neste sentido que defenderei que, face a ela, a viabilização da ética por parte de Heidegger é apenas e permanece estritamente formal, evitando qualquer tentação de medir o que, de por si, é des-mesura.

Neste sentido, tendo como motivação a contextualização ética da pergunta pela medida, realizada por Werner Marx, procurarei expor esta tese, cingindo-me a uma abordagem nos seguintes momentos: (1), o contexto epocal da questão ética; (2) o impasse heideggeriano como ponto de partida; (3) a questão da «medida» na voz de Hölderlin como inspiração; (4), a proposta de Marx; e concluindo, (5) o habitar poético na desmedida como resposta ética heideggeriana.

A Ética na era da técnica

O carácter fundamental da nossa época, enquanto radicalmente diferente de épocas anteriores, tem sido definido quase unanimemente como sendo a técnica, no que tem de unidade entre o saber, cientificamente fundado, e o produzir não só de artefactos, mas duma forma de organizar e gerir a sua produção e utilização, que determina um modelo de funcionamento social e político, cuja eficácia funcional se impõe e expande por todo o planeta. Os nomes pelos quais este morfema é designado têm sido vários, podendo o acento ser colocado em diferentes vectores do mesmo processo: uns acentuam o fenómeno da tecnociência (Habermas), outros a figura da sociedade industrial (Adorno, Horkheimer), em que aquele tem lugar, outros, mais recentemente, o processo pelo qual este fenómeno e esta figura se convertem num modelo totalitário ou de «globalização».

Heidegger descreveu a fenomenologia deste «projecto cibernético» ou «de controlo do mundo» (Heidegger, 1983 : 141-142)[7] e caracterizou-o como um novo paradigma histórico, a que deu o nome de Ge-Stell, a com-posição tecnológica do «aí», em que o ser é obrigado a comparecer e aparecer de uma forma predeterminada programaticamente (cf. GA 7).[8] Só o que for produzido sob a forma do funcional e disponível para os usos predefinidos na sociedade industrial poderá ter lugar no mundo da futurologia tecnocientífica moderna, expressão e potencial da vontade de poder humana. Esta figura, a que, em Identidade e Diferença (GA 11: 45-46), Heidegger também chama «constelação», traduz-se tanto na programação tecnológica do futuro como na leitura ideológica do passado e, portanto, na redução do tempo ao momento presente. Este, dilatado num processo sem fim, pode ser vivido como o tediosamente longo (tal como Heidegger o descreveu)[9] ou como o velozmente mutável (à maneira de Paul Virilio, 2000) e, nessa contínua mutação formal, aparentemente amorfo ou líquido (Bauman, 2000). Só o sistema – um com-posto que com-põe – permanece.[10]

Ora, esse sistema é vivido pelos humanos, em metrópoles massificadas e em terras exploradas e à beira da devastação. A concentração em grandes polos urbanos, de dimensões cada vez mais desmedidas, e o abandono do campo, cada vez mais desolado e ermo, são fenómenos sociologicamente estudados, característicos deste trajecto humano, que traz consigo alterações nas modalidades de convivência, potenciadas pelas novas tecnologias aplicadas à facilitação da vida quotidiana e à promoção da sociedade da informação e da comunicação, mas também à produção de bens de consumo e à distribuição dos mesmos. A técnica dos nossos dias, cientificamente fundada e industrialmente empreendida, tem repercussão na realização vital, na criação de cultura e nas maneiras de relacionamento intersubjectivo, tanto a nível social como até íntimo. É esta realidade complexa, articulada pela técnica nas suas multíplices potencialidades – e para cujo carácter «ideológico» Habermas chamou a atenção já em 1968[11] – que nos coloca novas questões, exigindo saltar a uma reflexão sobre as suas implicações éticas. Vou fazê-lo, brevemente, a partir dum ensaio de Vitorino Nemésio, publicado em 1976,[12] alguns poucos anos anterior às propostas de Jonas (1979) e Marx (1983) e revelador da situação epocal a que estas respondem.

Nesse ensaio, tardio na sua produção, este autor português, quase ignorado pelos filósofos, chamava a atenção para imbricação entre a «era» (a que chama «do átomo») e a «crise» (do homem), que resumia numa frase singela: “quando o homem parece ter tudo à sua disposição, declara-se infeliz” (Nemésio, 2003: 57).

Com estas palavras desenhava a situação, que analisa detalhadamente nos seus três ingredientes principais: a ciência, as suas consequências técnicas e a própria civilização em perigo. Dos três, o elemento catalizador é o segundo, pois considera que enquanto a ciência renuncia expressamente à demiurgia do saber, condenando-se ela mesma à «crise»,[13] a Técnica – cuja essência, diz, é “operar, urgir” (Nemésio, 2003: 51) – toma o lugar do Demiurgo ou do feiticeiro e impele a agir sobre o real e a transformá-lo. Esta «urgência», como essência da técnica, implica, por um lado, o seu carácter de «intervenção operativa», por outro, a «pressa» que a acompanha: “tudo urge; tudo é urgente”, diz Nemésio. É, diria eu, como se o saber fazer se tivesse transformado em compulsão ao acto – em um mero acting out, de que fala a psicanálise, sem o freio da reflexão, da elaboração cultural.

Não é, pois, uma «acção», no sentido tradicional, eticamente analizável. É um acontecer à maneira irreprimível do que os gregos chamavam phýsis: um poder que se serve da mediação humana, mas não é propriamente humano – algo que constitui um dos elementos fundamentais da leitura heideggeriana, ao negar carácter antropológico ao fenómeno da técnica. Nemésio não vai tão longe, na sua interpretação. Mas é consciente de que a incorporação desta urgência no processo civilizacional, mediante a sistematização e o método (Nemésio, 2003), age, na verdade, sobre a própria ciência, traduzindo-se na sua «escravização», potenciadora do «puro jogo de fórmulas» e instigadora do «máximo rendimento» das mesmas (56). Este processo, que estava em jogo desde os sec. XVII-XVIII, culmina na «transformação material e utilitária do mundo» (63). Mas, paralelamente, esta possibilidade do máximo domínio mediante o cálculo age, sobretudo, sobre o próprio homem e, assim, se lhe converte em vertigem: a «infelicidade» (57), que é sintoma da sua crise. Perde-se, então, o sentido do que os clássicos, desde Aristóteles, caracterizaram como a beata vita.

Como se manifesta este processo na quotidianeidade? Primeiramente, na transformação da própria experiência do cientista. Se, inicialmente, o invento era a descoberta, as mais das vezes casual e sem aplicação imediata, com a modificação do processo passa a haver «inventores profissionais», como Edison, financiados por empresas, prelúdio do «cientista de equipe, sujeito à consigne da administração», a que hoje assistimos de forma sistemática e justificada pela eficácia da empresa investigadora. Mas também do que Nemésio, em alerta, chama «movimentos espiados pelo monopólio ou pela polícia» (63). Mas, em segundo lugar, “aqui tocamos na carne viva da crise do homem actual”, uma “inversão de valores que se desenha na estrutura institucional da ciência” (Nemésio, 2003), mas que a transcende, invadindo a vida social. A «crise» transforma-se em «vivência».

Desta mutação da vida quotidiana, Nemésio regista alguns fenómenos essenciais: o “empobrecimento de certos recursos físicos da espécie, sobretudo da acuidade dos sentidos” (73); o “cansaço ou velhice precoce do Homem como espécie”, paradoxalmente acompanhado da “lentidão em chegar à vida adulta” (74); o “desaparecimento da família patriarcal” (75); ao nível da investigação científica, os cientistas “perdem a cumplicidade” e tornam-se rivais, falando linguagens cada vez mais restringidas e formalizadas; a massificação e desumanização (93); e, em geral, assistimos à “decadência da simpatia humana” (94), à “retracção e encurtamento da vida afectiva e à diminuição da cordialidade” (93).

É esta transformação do habitat humano, urgida pela técnica moderna, que nos interessa tematizar. A ele procura responder, em 1983, Werner Marx ao tentar erigir uma ética do próximo sobre a base existenciária da afectividade, no contexto dum ser-uns-com-os-outros não indiferente. Mas o ponto de partida dessa pesquisa é o problema desenhado por Martin Heidegger.

O impasse heideggeriano como ponto de partida

O retrato de época, a que Nemésio, entre outros, tão limpidamente deu voz, ao mesmo tempo que manifesta uma fase da civilização ocidental, exportada pelo mundo fora, constitui um desafio ao pensamento, à cultura, à vida e convivência quotidianas. Heidegger apenas se preocupou com descrever fenomenologicamente o processo, inerente à maneira de ver e pensar metafísicas, sendo esta característica do solo em que se implantou o pensamento grego, modulado pela concepção judaico-cristã do Deus único, e transformado pela centralidade moderna da ciência e da correlação, nela enraizada, de sujeito e objecto, como medida do real. Nessa descrição, chamou a atenção para o carácter ontológico do que assim acontece: a mutação formal do modo de experienciar o ser. E, fiel à sua escolha da afectividade como portadora precoce do sentido, levou a sua análise à exibição do carácter de Perigo, assim detectado.

Este «perigo» não é um perigo qualquer, algo, alguma coisa ou situação perigosas. Tal como Heidegger o menciona, em diversos lugares, trata-se duma ameaça ontológica e não meramente ôntica. É a ameaça do ser pelo ente: a possibilidade do des-aparecimento, do eclipse total do ser no deslumbramento do que constitui a nossa cultura globalizada, erguida sobre o desejo, sobre a vontade de querer, que enche o seu vazio com as coisas, que a indústria produz e o mercado distribui. A esse Perigo ontológico respondem vários comportamentos humanos, que o têm como correlato: a angústia, com o seu alarme ante o ausente e sem figura; o tédio profundo, com o esvaziamento do campo objectual, que já nenhum passatempo consegue resgatar; o susto, com a sua brusca e fugaz retirada do quotidiano; e outros. Esses comportamentos fazem ainda parte da descrição fenomenológica do «aí» em que o ser se dá, escapando-se à sua retenção ôntica, à forma de coisa de qualquer das coisas à beira das quais sempre estamos no nosso ser-no-mundo.

Em Heidegger, a análise, por mais aguda que seja, fica-se por aqui: pelo ontológico – ao fim e ao cabo, à maneira kantiana, pelo «formal». Não há indagação do concreto, de circunstâncias, e mesmo os exemplos dados, são-no liminarmente. Não há, pois, margem para a reflexão sobre as consequências concretas da acção humana no mundo da vida, mas apenas para a constatação da inquietude despertada pelo que se adivinha, sem se ver nem saber ainda. Esta análise pode, pois, permitir uma reflexão preparatória, mas não basta para a edificação duma ética.

Heidegger foi fiel a essa sua convicção acerca do carácter preparatório do pensar. Como dizia em 1966, o pensar (em sentido pós-metafísico) só pode aspirar a ser um “preparar-se para estar-disposto a manter-se aberto para…”.[14] Com razão se poderia interpretar como «esotérica»[15] esta forma sibilina de não entrar na questão do que pode o pensar. Não pode, em qualquer caso, intervir directamente e agir, modificando um estado de coisas. Essa aspiração a intervir foi claramente ultrapassada, após aquilo que poderíamos chamar a repetição heideggeriana da aventura siracusana de Platão. Ou, para usar as palavras de Pöggeler, «den Führer führen» revelou-se totalmente improcedente, por mais ardente que pudesse ter sido a expectativa.[16] Restou a consideração de que, “para os poucos e raros” (GA 65: 11 ss.), só resta um caminho: o de aguardar – recolhendo e guardando os ecos da origem – a chegada do que chamou “o deus derradeiro”. Uma escatologia, ao fim e ao cabo, embora sob a capa do misterioso, do que, sem figura reconhecível, apenas pode ser esperado e escutado e, nessa medida, preparado o seu advir. Pouco menos que um caminho de iniciação… que só os já iniciados poderão percorrer.

Definitivamente, não se encontra aqui a base para uma ética. Mas podem encontrar-se indícios do que poderia ser a experiência desse aguardar, desse estar disposto e manter-se aberto para a chegada do deus derradeiro. Ou, o que é o mesmo, poder-se-iam encontrar os pontos cardeais do que seria o âmbito de acolhimento do novo, na medida em que este está em sintonia com a origem. Pois a esse âmbito chama Heidegger, na carta sobre o Humanismo, a propósito do fragmento 119 de Heraclito,[17] «morada (ou estância), o sítio onde se habita» (Aufenthalt, Ort des Wohnens) – expressão que usa para traduzir o grego êthos o «âmbito aberto, onde mora o homem…, na proximidade do deus». Esse sítio é onde se está habitualmente, é onde transcorre a nossa vida quotidiana, na sua insignificância e transitoriedade. E é neste contexto que, um poco mais à frente, afirma:

Se, porém, de acordo com a significação de fundo da palavra êthos, se quer dizer que com o termo Ética se pensa a morada do homem, então é que este pensar, que pensa a verdade do ser como o elemento inicial do homem enquanto ek-sistente, é já, em si, a ética originária. (GA 9: 356).

A remissão ao grego pré-platónico e ao seu registo em Aristóteles serviu, assim, a Heidegger para responder a Beaufret dizendo algo parecido a: não preciso escrever uma Ética,[18] porque o pensar do ser – o que nos Beiträge aparecia como o Ereignis-denken, o pensar propício que é ele mesmo apropriação do ser – é já de por si uma ética em sentido originário: enquanto pensar do ek-sistente humano como aí ou morada do ser, é ele mesmo ético. Podemos comentar, então: não é uma ética no sentido dum edifício ou sistema (tipo more geométrico ou System der Sittlichkeit), mas apenas no de ser o princípio restaurador duma relação originária ou vínculo puro do ser à maneira humana ao ser em geral. Este princípio é, para Heidegger, o do sagrado (Heil, Heiligkeit). A Ética é, portanto, uma das dimensões do sagrado.

Ao sagrado não se opõe, para Heidegger, o que na consciência moderna chamamos «laico», pois não é no contexto socio-histórico da secularização – isto é, da realização da modernidade – que lhe é feita referência. Ao sagrado (Heil) opõe-se o mal (Unheil), no mesmo sentido em que graça e desgraça se co-pertencem como opostos, ou o são e o insão. O termo alemão tem uma significação rica, paralela à do latim salve: tem que ver com salvar, sanar, saudar. O sagrado é o âmbito do são e salvo, do abrigo, do estar a coberto da verdade do ser. É, pois, o sítio onde se salvaguarda o vínculo originário dos mortais com o dar-se do ser – esse vínculo que fica esquecido nos comportamentos profissionais, na brutalidade das relações meramente funcionais, mesmo se deontologicamente correctas. Era esse embrutecimento que Nemésio descrevia como a “decadência da simpatia humana” e a “diminuição da cordialidade” e que Agamben considera um retraimento do humano no «embotamento» ou «aturdimento» (Benommenheit), que Heidegger descrevia como característico do animal, na sua «pobreza de mundo».[19] A Ética principia nessa abertura e acolhimento do outro, humano ou não humano, na proximidade do mais longínquo, do não-ente, seja o divino, seja o terreno ou o cósmico. É isso que desaparece com a queda no mero estar ocupado com as coisas e no calculismo promovidos pelo modelo socio-cultural dominante na era da tecnologia avançada.

Temos, pois, como resultado desta indagação da posição heideggeriana o que considero ser de encarar como um impasse: por um lado, há uma defesa da eticidade do Dasein, embora sobre a base duma redefinição do que significa ética e do que significa, originariamente, o seu étimo grego; por outro, há uma negativa a considerar a possibilidade de desenvolvimento duma ética, no sentido tradicional, sobre a base (1) do seu carácter «meta-ontológico» (cf. GA 26: 199) e (2) da crítica de noções essenciais, como sujeito, norma e valor. O pensar pós-metafísico – o «outro pensar» (na Entrevista a Der Spiegel) ou o pensar no «outro início» da História do Ser (nos Beiträge) – é já, à partida e originariamente, ético. Mas, por isso mesmo, não é preciso (o ser não precisa) que se edifique uma Ética. Porque isso implicaria construir um sistema de prescrições, ordenadas calculadora e hierarquicamente sobre pilares, mais ou menos more geométrico

Santo Agostinho, cuja obra ética é filosoficamente vasta e rica, ainda podia resumir o seu pensamento dizendo lapidarmente: “Ama e faz o que quiseres”. O imperativo do amor, tal como o imperativo categórico kantiano, é estritamente formal: não importa o quê mas o como. Heidegger não diz nada semelhante, mas deixa semeada a ideia de que ético é só o habitar humano sobre a terra, exposto ao celeste e na proximidade do divino – aberto ao Geviert, a Quadrindade. E não há regras nem bitolas para medir com certeza a adequação dos comportamentos e homologar os resultados da acção humana.

Porém, junto com a graça, cresce também a desgraça – foi isso que Sófocles soube dar a pensar com a sua Antígona. Só o pressentir do Perigo pode preservar o homem da hýbris, a que o impulsam as capacidades inquietantemente superlativas de que está dotado. Por isso, se procurássemos em Heidegger um lema ético, à maneira do agostiniano, talvez até pudéssemos encontrar um, embora não resolva o paradoxo e se expresse na voz de outro: refiro-me ao investimento ético da estrofe, tão admirada, do poema Patmos de Hölderlin – «Mas onde está o Perigo, cresce também o que salva.»

Habitar no mundo é estar exposto à desgraça, mas igualmente à graça da salvação. Ambas procedem da radical desmesura do poder fazer / saber fazer humanos, capaz de fazer violência, ao criar tanto quanto ao destruir. No fundo, transparece no Heidegger tardio a vigência daquilo que, no período marcado pela linguagem de Ser e Tempo, era designado como Sorge, o cuidado. O cuidado é o ser do aí-do-ser, algo mais que no sentido estritamente formal da temporalidade, que lhe é inerente. Pois o cuidado, na sua pureza, brota no meio do descuido, cresce do mero repetir de rotinas no quotidiano estar-ocupado no mundo, que faz um mundo que, hoje, tecnologicamente gerido e controlado, se traduz numa sociedade doente, embrutecida e indiferente ante o que Ernst Jünger (1998), sublinhando o ingente e desmedido deste processo, chamou os «Titãs a vir».

O essencial desta perspectiva ética reside, então, naquilo a que Heidegger, com diferentes matizes, chamou Kehre:[20] a inflexão ou torsão que se dá no acontecer mais originário, na mais inicial das apropriações. A Kehre im Ereignis indica esse torcer-se do ser no próprio instante do seu aparecer: o seu des-aparecer (enquanto ser) para aparecer «aí», sob a figura ôntica do Da-sein, preso à presença das coisas e distraído, quando não surdo, ao apelo silencioso do secreto. Mas, ao mesmo tempo, nesse acontecimento da Kehre oculta-se uma Wider-kehre: uma torsão em sentido contrário, em que o apelo ao «aí» (na sua pertença ao ser) suscita deste o escutar e, portanto, a possibilidade de (re)fundar o propiciar-se do ser, a experiência autêntica da relação, num «arrebatamento que cativa» (berückende Entrückung).[21]

Um aspecto dessa torsão é o da graça se tornar desgraça, o são em insão, é que no e do sagrado possa brotar o mal. A longa meditação de Heidegger sobre o Tratado da Liberdade Humana de Schelling, a que Werner Marx dedica importantes passagens do seu livro,[22] é, neste sentido, sintomática. Contudo, a originalidade de Heidegger parece-me estar em que põe o acento no movimento de sentido contrário, na inversão que faz surgir na mais apical acuidade (que é o pressentir do Perigo) a torsão do descuido em cuidado, a transformação da privação na mais originária das possibilidades. O que só tem sentido, manifestamente, tendo em conta que o ponto de partida e referência é a nossa pertença a um mundo doente: a época de Gestell. É àquela viragem ou guinada positiva que dá todo o relevo ao longo do seu pensar: à salvação e cura que brotam como possibilidade no seio do mal e do insão; ao recuperar de uma via, aberta a partir do des-vio obscurecedor. Ora, no percurso heideggeriano, esta orientação é introduzido tendo a poética de Hölderlin como fio condutor, muito para além da mera apropriação dum lema inspirador.

A questão da medida no encontro de Heidegger com Hölderlin

Num texto tardío,[23] que começa com a evocação dum campanário de igreja, Hölderlin medita sobre o habitar poético do homem, no seio das quatro dimensões do seu mundo, abertas como horizonte do seu ser: o terreste e o celeste, o humano e o divino. “In lieblicher Bläue”, título pelo qual é conhecido, é um texto complexo e rico, difícil de reduzir às duas afirmações que motivam que nele nos detenhamos, nesta breve análise. Heidegger dedicou-lhe um dos escritos do segundo volume de Vorträge und Aufsätze: “… dichterisch wohnet der Mensch…” (1951),[24] mas esse tema central reaparece amiúde noutros da mesma época, nomeadamente nos que compõem este mesmo volume.

O texto[25] inicia-se com a consideração da beleza, experimentada pela contemplação da torre duma igreja, que resplandece ao sol, envolta no doce azul do céu. Hölderlin diz do campanário que “floresce” (in lieblicher Bläue blühet..), numa evocação da sua proximidade à natureza, proximidade que é reforçada ao comparar, a seguir, as portas de madeira, que protegem os sinos, às árvores dum bosque. Nesta proximidade estão, pois, os humanos e a natureza, unidos na celebração do divino, sob o azul do céu. Esta união em proximidade, na sua simplicidade, é para o poeta a imagem do sagrado, experimentada como serenidade e pura beleza. A descrição poética do campanário traduz uma maneira de estar que torna a paisagem em morada, implanta o estar humano numa região de encontro [Gegend /Gegnet], que torna próprio o sítio em que se está, localizando-se. Esta experiência do sítio enquanto habitat é, ao mesmo tempo, um sentir-se em beleza, um experimentar-se, em feliz plenitude, nas produções do homem, em união com a natureza e com Deus. É a esse todo axialmente articulado a que Heidegger chamará Geviert, o entrecruzar-se das quatro «regiões» do mundo: terra e céu, humano e divino. Esta experiência é «poética», para já, num duplo sentido: porque é compreensão do mais originário (a união das quatro), ou o irromper florescente dessa plenitude; e porque, sendo criativa, não é interventiva, mas apenas uma sensibilidade ao presente, a serena aceitação do que se dá. Mas é ainda prematuro centrar-se nessa adjectivação.

No contexto desta aparição do todo quadripartido, é introduzida outra comparação fundamental, ao dizer-se dos “celestes” que, “como os ricos, têm de uma vez só virtude e alegria”, enquanto que os homens, cuja vida é tão cheia de moléstia, apenas podem querer ser como eles e imitá-los: medir-se com o divino[26]. Mas como medir-se com o que é desconhecido? Através do que é a única manifestação que dele podemos ter: o «céu», o que não pertence à Terra. Tal é o que “é do homem a medida”: o desconhecido – o divino através do celestial. Der Menschen Mass ist’s.

Assim introduzida a ideia duma «medida», ela não é, decerto, propriamente «humana» – à maneira da interpretação tradicional do homo mensura atribuído a Protágoras. A medida é, por um lado, o que surge do «medir-se com», sich messen mit: de certo modo, um competir com, um procurar ser competente como o divino; o que, por outro lado, implica ter como medida a imagem, porventura feliz, do modo como o divino nos toca. Essa imagem – ou, como Heidegger diz, esse “deixar ver algo”[27] – é, no entanto, a que o homem, paradoxalmente, guarda de si para si mesmo: ser à imagem do divino, do que não pertence à Terra. Nisso consiste a sua riqueza, maior que o céu estrelado: “er heisset ein Bild der Gottheit”. É neste contexto que surge a interrogação, que dá o mote a esta nossa meditação – “Gibt es auf Erden ein Mass? – e a imediata resposta do poeta: “Es gibt keines.” Não há, afinal, uma medida propriamente dita sobre a terra: apenas a imitação do celeste, a emulação do divino. O que o homem tem por medida é a desmesura do seu competente «medir-se com», da sua aspiração ao mais alto.

No poema, esta tensão imanente ao humano vem também, um pouco adiante, a ser contrastada com o que se passa com os outros entes. Também uma flor é bela, e um riacho – valem por si só, sem necessitar ser algo melhor. Só o homem, em contrapartida, é capaz de aspirar a ser como um cometa, veloz, fogoso e puro como uma criança.

Quereria ser um cometa? Creio que sim. Pois têm a rapidez das aves, florescem em fogo e são como crianças em pureza. Não pode a natureza humana ter a ousadia [sich vermessen] de desejar algo superior.[28]

Apenas o homem aspira a ser mais do que lhe é dado ser: só ele se mede com os deuses e encontra no grandioso a sua imagem pura. Esta sua desmesura é o esquema do seu ser: enquanto mortal, é capaz de desejar ser como um cometa, mas, sobretudo, aspira a espelhar o divino, tem a ousadia de emulá-lo. E é nesta tensão que experiencia o que possa ser uma medida: medindo-se com os deuses, institui a escala – Heidegger diz «a dimensão» – pela qual se supera a si mesmo, enquanto ente finito e pertencente à terra. É sua condição ser entre o céu e a terra, ser espelho mortal do divino.

Mas essa duplicidade só interessa a Heidegger sob a forma do que chama o «jogo especular» (Spiegel-Spiel).[29] Descreve-o como a articulação dinâmica do habitar humano em abertura às Quadrindade ontológica. É um jogo em que os quatro se espelham, fundando o aí em que o ser se mostra. Esse jogo tem carácter poético, no sentido em que, em A Origem da Obra de Arte, a poesia era Schenkende-gründende-anfängende Stiftung – instituição que doa, funda e inicia o aí-do-ser no mundo humano.[30] O que não se conforma à actividade poética de escrever poemas, mas à capacidade humana de acolher o que há… dichtend: “um olhar que atravessa o (inacessível) Entre a terra e o céu”. A esta travessia poética do inacessível Entre chama Heidegger a dimensão[31]. É nesse sentido que traduz a medida, de que Hölderlin falava: Mass é o que se dá na Durchmessung (travessia) e Zumessung («atribuição duma medida») ao Entre, descoberto à luz do medir-se com (sich messen mit) e da ousadia (Vermessung). A dimensão é o espaço feito ao habitar do homem entre a terra e o céu.

A questão da medida não surge, portanto, no contexto da medição e do cálculo, nem no de «tomar medidas» para gerir o nosso precário estar no mundo; surge, estritamente, como expressão do «abrir-se» ao divino e parece, pois, indicar o esforço por corresponder ao mais alto, alcançar o mais alto mérito. Sobre a terra, em qualquer caso – no que é o viver quotidiano: um «habitar» (wohnen), residir ou ter morada.

Só agora chegamos, na verdade, a uma estrofe, que o presente comentário tinha saltado, mas que, com razão, dá título ao texto de Heidegger sobre o habitar humano, antes citado:

Voll Verdienst, doch dichterisch wohnet der Mensch auf der Erde.

Cheio de mérito, mas poeticamente, habita o homem sobre a terra.

O verso, algo inesperadamente, é introduzido no centro da referência hölderliniana à medida: que o divino, na sua aparência celeste, é «do homem a medida» e que, portanto, não há medida terrena. É, porém, na terra que o homem habita. Como, se a sua bitola é o que não pertence à terra? Talvez cheio de mérito, por aspirar ao mais alto, mas também vulnerável e propenso à experiência da infelicidade, pois, ao contrário dos deuses, não lhes são dadas «virtude e alegria» em uníssono, sendo o seu caminho de muito esforço (Mühe). Contudo, Hölderlin não fala do penoso, mas antes de que, apesar do desmedido da sua ambição, «não é infelizmente» que o homem, de coração puro, absorve como sua essa escala celeste. A desmedida – hýbris – atrai a desgraça, como tão pregnantemente foi descrito na tragédia grega. Como poderá, então, a desmesura ser vivida em graça? É por aí, creio, que Hölderlin avança no poema, ao insistir, primeiro, na referência à alegria (Freude) dos deuses e, depois, à não infelicidade do homem (nicht unglücklich). Algo mais adiante, chega mesmo a louvar a «virtude da jovialidade» (Tugend der Heiterkeit) em contraste com a seriedade de espírito. Em que consiste essa virtude?

Penso que a felicidade está no maravilhar-se com esse cúmulo de beleza, introduzido na primeira parte do poema, em que os quatro se unem, e no seu interiorizar-se puro. Esta interiorização é o deixar-se inundar que espelha a Quadrindade, no seu jogo, na sua musicalidade. Por isso, penso, embora «cheio de mérito», não são esses altos méritos e os seus logros que fazem dele um feliz morador da terra. É só poeticamente que o homem «habita sobre a terra». Numa passagem que considero evocadora da sua própria tradução do «Canto dos Velhos Tebanos» de Antígona,[32] Heidegger, acentuando aquele «embora» (doch, que ele reforça em zwar), comenta:

O homem ganha muitos méritos no seu habitar, pois cultiva as coisas que, na terra, crescem e cuida da maleza superabundante. […] No entanto, os méritos deste construir multímodo nunca esgotam a essência do habitar. (GA 7: 195)

Tem mérito o que implica esforço, desejo de superação e capacidade de realização – o que permite, diríamos, a sobrevivência sobre a terra, a edificação da polis, da civilização e da cultura – o que é susceptível de medida e de valor. Mas não é nesse sentido corrente que Heidegger e Hölderlin falam do «habitar», que, para ambos constitui «der Grundzug des menschlichen Daseins» (GA 7: 193). Para Heidegger, como intérprete de Hölderlin, trata-se de

pensar por um lado, a existência do homem a partir da essência do habitar e, por outro, a essência do poetar como um deixar habitar, como um construir, talvez mesmo como o construir por excelência. (GA 7: 193)

Encontramo-nos, assim, no limiar do que, como vimos, constitui, para Heidegger, aquilo que é a Ética, enquanto esta é inerente à Ontologia: a morada como êthos, que agora se desenha como sendo de ordem poética.

Há uma medida pós-metafísica? A hipótese de Werner Marx.

A actual situação é, decerto, diferente da que Hölderlin reflecte. A «fuga dos deuses», de que este falava, estabeleceu-se definitivamente no mundo secularizado e, como tal, expandido. O mundo da técnica globalizada é também o da “morte de Deus” e dos valores que se lhe vinculam. Já não é, neste contexto, possível partir do divino como «medida», pois o divino já não é reconhecido como tal. A colocação do problema da Ética, por muito que parta da expressão hölderliniana, não pode arrancar dos mesmos pressupostos, pelo que, consequentemente, Marx restringe o campo da sua pesquisa ao meramente terreno, prescindindo da hipótese do divino, indelevelmente marcado pelo religioso. A questão da medida centra-se no «humano, demasiado humano» para procurar a salvação ante o «supremo Perigo», encontrando fundamento para a acção responsável, capaz de se decidir pelo Bem em vez de promover o Mal. A questão, assim reformulada, será:

Onde encontrar, então, as características essenciais da medida enquanto tal, se já não está ligada sem mais com «o celeste», enquanto medida determinante? E se a filosofia se pergunta pelo fundamento de uma Ética do próximo, que deva proporcionar uma medida sobre a terra, não terá, antes, de colocar a questão de se não será de pensar uma outra essência da medida? (Marx, 1986: 14)

É, pois, dupla a reformulação: em primeiro lugar, trata-se de renunciar a uma acepção de medida transcendente ao homem – o que coloca o problema de onde encontrá-la na terra; em segundo lugar, lança-se a hipótese de que o próprio conceito de medida tenha que ser reformulado. No prosseguimento desta hipótese, Marx contrasta o pensamento da tradição metafisica com a crítica radical da mesma em Nietzsche, Marx e Freud, para encontrar em Heidegger, e na sua busca de um «outro início», o que chama um «espaço intermédio» (Zwischenbereich) (16), susceptível de ser explorado quer na direcção desconstrutiva da sociedade tecnológica, com a sua tendência ao domínio, quer na direcção construtiva da edificação duma Ética secularizada e não metafísica. É, pois, a partir deste espaço intermédio que, em sintonia, mas não em coincidência com Heidegger, lança o seu projecto.

Em primeiro lugar, ocupa-se de redefinir o conceito de medida (Mass). Na tradição moderna é a da ratio-mensura, que se liga à noção de proporção e de cálculo, quer no foro matemático, quer no moral. A racionalidade triunfadora, pela via metódica da ciência, é a medida do progresso e da expansão da civilização sob o seu modelo ocidental. Na sua manifestação mais extrema, mais actual, tem os contornos paradigmáticos do que Heidegger chamou Ge-Stell, a constelação tecnológico-industrial, que, na sua fase actual, tudo transforma em bens de consumo. Sendo este paradigma a expressão do valor absoluto na actualidade, poderia ser ele «a medida» do nosso mundo? “Ge-stell tem o poder de impregnar os dependentes, de tal maneira que estes seguem, sem reflectir, [as suas directrizes] como elo de união vinculante” (44). Sob o signo de Ge-stell, o homem encontra-se numa situação de adesão tácita, levado por uma dinâmica imparável de absoluto domínio e, portanto de desmedida. De ser «medida» sê-lo-ia apenas no sentido do «supremo Perigo», do mais extremo errar: uma «falsa medida» (45), um induzir em erro. Walter Biemel, num texto festivo dedicado a Marx, caracteriza a essência da técnica moderna explicitamente como «desmedida» (Masslosigkeit).[33]

A medida, enquanto conceito ético, terá, pois, de ser encontrada noutro lado. Marx começa por procurá-la na noção de «sagrado» (Heil, Heilende) (47), enquanto vínculo homem-ser, não no sentido hölderliniano de «emulação do divino», mas no heideggeriano de abertura às quatro regiões do mundo, na figura do Geviert (45-46). Mas chama a atenção para que qualquer destes conceitos tem «estrutura de aletheia» (45), pelo que não se desvelam totalmente, podendo permanecer «encerrados», quer no sentido do guardar o mistério, quer no de, pura e simplesmente, se não darem a ver no mundo gestéllico.

Justamente neste fechamento da dimensão de sagrado vê Heidegger «o mais característico desta época». Por isso, o sagrado, tal como Heidegger o define, não pode servir de medida para a acção responsável. (47)

A «medida», neste nosso mundo, terá, pois de se deixar ver, terá de ser encontrada em algo que se imponha à maneira do universal e necessário kantiano, manifestando-se como vinculativo, caso contrário não seria propriamente ético. Não podendo a Quadrindade heideggeriana, enquanto estrutura, ter esse carácter, Marx faz ainda uma tentativa de analisar este conceito no sentido de encontrar algum dos quatro componentes em jogo, como possível modelo de acção. Descarta, pelas razões já aludidas, a figura do divino, e encara, pois, a dos mortais.

Os «mortais» são, decerto, os humanos, que se espelham no jogo dos quatro. Voltaríamos, então, ao homo-mensura, no sentido do «humanismo»? Marx, com Heidegger, rejeita esse humanismo moderno, ancorado na subjectividade e nos valores, mas critica o mestre, que, no fundo, não se despegou da negação hölderliniana de que fosse possível encontrar na terra uma medida. Procura, pois, extrair da própria condição de «mortal» – insuficientemente aprofundada por Heidegger, “que só a considerou marginalmente, mediante a repetição da fórmula «ser capaz da morte enquanto morte»” – da relação do homem com a morte na experiência de ser mortal, “a medida orientadora da acção responsável” (49). Mas uma tal medida não o pode ser à maneira tradicional, que requer a clareza e univocidade, que a experiência da morte não tem. Será, pois, diz Marx (50), uma «estranha medida», uma «tabela para medir o incomensurável». Em que sentido se poderia, então, aceitar que fosse a medida, que procuramos?

A morte des-faz os mortais em horror (ent-setzt die Sterblichen), [retirando-os] dos seus hábitos e relações no lidar com as coisas. Mas sobretudo solta-os do modo e maneira quotidianos do seu «estar-com» outrem. O des-fazer-se no horror da morte é percebido, sobretudo, quando devolve o homem a si mesmo como aquele que, toda a vida, terá de se aguentar sem a ajuda dos outros. A sintonização (Gestimmheit) que este poder da morte tem de des-fazer em horror (Ent-setzen) é um verdadeiro «horror» (Entsetzen), muitas vezes desesperante. (53)

Marx leva, pois, a experiência da morte para lá da leitura heideggeriana, quer em Ser e Tempo, onde se dava primazia à angústia, como sensibilidade ao nada sob a forma do desaparecer humano; quer nos Beiträge, onde a tonalidade afectiva fundamental, enquanto sensibilidade à distonia da maquinação tecnológica, aparece como a reserva e o temor,[34] propiciatórios do surgir, como resposta, duma atitude (Haltung) de vigilância e salvaguarda do ser (Wächterschaft des Seins). Nessa linha, mas mais além, Marx traz a primeiro plano o desespero horrorizado ante a evidência da aniquilação massiva, da soçobra colectiva, que tanto se aplica ao holocausto, como aos actos do terrorismo organizado, como à actualíssima tragédia dos migrantes, nas suas multíplices formas. A resposta humana, dir-se-ia, é exigida por essa potenciação do mal, da desgraça e desmesura, que o próprio homem é capaz de causar. Pois,

a repentina reviravolta (Umschlag), [que é] o caminho inerente à sintonização, pode ter como resultado, que o homem chegue a atingir uma sintonia, capaz de se sobrepor (überwinden) àquele horror e, nesse sentido, ser «salvador» (heilend). É esta a nossa tese. (54)

A ideia base continua, pois, a ser a dessa torsão ou golpe de rins que sirva para voltar da desmedida à medida, da experiência do mal à busca do bem: de explorar a terra a habitar nela, da devastação à responsabilidade. Mas à busca desta Kehre, só inicialmente heideggeriana, parece-me juntar-se algo novo: o sentido do ser mortal, que se desvela nesta experiência, não é, como em Heidegger, o da sensibilidade à própria morte, mas à morte do outro, à morte dos outros com os quais sou, neste mundo já de sempre partilhado. O acento ético vem, pois, dado pela primazia do ser-uns-com-os-outros (Miteinandersein) no mundo sobre o mero ser-com (Mitsein). Marx sublinha, aliás, a importância desta abertura ao outro, estabelecendo o contraste desta categoria relativamente à da mera «intersubjectividade», pois enquanto esta pressupõe a existência de vários sujeitos, presentes uns aos outros à maneira tradicional metafísica de algo/alguém vorhandene, o «ser-uns-com-os-outros» constitui uma relação estrutural prévia à separação de sujeitos, eventualmente até ao processo de auto-identificação, conducente à constituição de comunidades inter-subjectivas. Mas, sobretudo, Marx vê nesta categoria do Miteinandersein, aberta na experiência do ser mortal e no modo como se realiza, “a base fundamental para uma ética não metafísica, que mesmo Heidegger não pensou” (55). No fundo, traduz-se no «sobrepor-se ao ser-com indiferente aos outros» (55). É este o caminho que Marx se propõe mostrar fenomenologicamente, isto é, descrevendo como é experienciado.

Partindo da evidência de que “a relação do homem consigo mesmo e com os outros se mantém numa tonalidade da mais total indiferença”, Marx procura mostrar que a experiência do mal e do horror conduz à experiência de um «extremo desamparo» (Hilflosigkeit), situação afectiva “em que a indiferença para com os outros como estando meramente presentes (bloss Vorhandene) desaparece e, lenta e crescentemente, se vai transformando numa relação que converte em companheiros (Mitmenschen)” (56), aqueles que prestam ajuda em situação de emergência e miséria (Not). É certo que esta tendência não progride de forma necessária, e que, muitas vezes, se deixam os humanos voltar a agarrar pela maneira indiferente e inautêntica de comportar-se para com os outros. No entanto, para Marx, uma vez desperto para a relação sã, atenta, solidária, amistosa, essa experiência pode repetir-se e conduzir a uma atitude, Haltung. Mais importante, pois, que a comunicação intersubjectiva e a interacção social, parece ser a carga de afecto que essa atitude comporta. É nessa afectividade radical que, segundo Marx, se produziria o ético.

Alguém que está são só sabe que está realmente são, se já não está doente e, nesse sentido, faz a experiência de estar «curado» (geheilt) e, a partir de aí, já sabe ser o seu estado de saúde, de «cura» (Heilen). Do mesmo modo poderia aquele que tem de si experiência no seio duma comunidade de tus, considerar que esta é «salvadora» (heilend) e como «sagrada» (heil). Empregamos esta designação do «heilend» e de «das Heilende» com exclusão consciente de todas as outras significações que se ligam a estas. Elas caracterizam o mortal, que vive numa relação consigo e com os seus Mitmenschen (os que com ele con-vivem) na «verdade do ser», que habita salvo no que salva (geheilt im Heilenden). Em qualquer caso, só «habita» se este habitat não for uma sintonia meramente passageira, antes tenha ganho figura e se a mudança que nele se deu se desenvolver em «traços de carácter» e neles se firmar. O salvador poderia então ter ganho uma figura equivalente ao que a tradição designava por amor, compaixão e reconhecimento do outro, com quem convivo. Para quem quer agir responsavelmente, estas figuras do que é salvador tornaram-se medidas, que transem (tragen) todo o seu ser e que nem por isso se lhe apresentam como exigências ou deveres. Então, é que esse alguém já estava no caminho que conduz à sintonia do fraterno Tu. (Marx, 1983: 58)

Resumindo: O «ético» surge enquanto atitude, como resposta necessária à vulnerabilidade apercebida da condição terrena dos humanos, imersos na insalubridade e na dor, e à sua transmutação mediante o fortalecimento afectivo da relação com os outros, não iguais a mim, mas como eu singulares, com os quais partilho a mesma condição. É a experiência de apropriação da penúria alheia que propicia o acontecimento fundador, a partir do qual poderia edificar-se qualquer sistema ou «Ética»[35], cuja medida, como sublinha Jamme (2007, p. 369), prescinde de qualquer referência religiosa, sendo encontrada estritamente na vida quotidiana.

Conclusão: O habitar poético na desmedida

Tentemos sintetizar, para concluir, este diálogo polifónico. São três os pontos que gostaria de deixar semeados.

Em primeiro lugar, sem a reformulação heideggeriana da ética através da referência à «morada» do homem, como vimos anteriormente, o texto do poema de Hölderlin poderia ter uma leitura estética ou religiosa, mas dificilmente poderia ser tido como indício ético. A recuperação que Marx faz da interrogação poética dá-se estritamente nesse contexto híbrido do entre Heidegger e Hölderlin. O que não quer dizer que seja injustificável o salto. Recordemos, para já, o vigoroso apelo a uma ética universal, com que se inicia (1797) o fragmento chamado “Primeiro programa do idealismo alemão”[36], produzido em conjunto pelos três amigos de Tübingen (Hölderlin, Hegel e Schelling):

uma Ética. Uma vez que toda a Metafísica vem cair na Moral […] esta Ética vem a ser nada mais que um sistema completo de todas ideias, ou, o que é o mesmo, de todos os postulados práticos…[37]

E, algo mais adiante, após a introdução da Física, da obra da liberdade (diferentemente do que é mecânico, como o Estado e a Máquina), da História da Humanidade, de Deus e da imortalidade como ideias a desenvolver, o fragmento termina esta enunciação com “a ideia da beleza, que a todas reúne”,[38] desembocando numa mitologia da razão de pendor estético. Há, pois, que compreender que Hölderlin se movimenta, desde o início, num horizonte em que tudo se une poeticamente, orientando-se para a compreensão do humano em plenitude de abertura à Natureza, à Liberdade e a Deus.

Assim, não é injustificada a leitura ética que Werner Marx faz do texto do poema, inspirador do seu projecto de uma ética pós-metafísica, desenvolvido sobre os fundamentos da via heideggeriana.

Em segundo lugar, é, no entanto, nesta última que surgem os marcos que balizam a sua travessia. Marcam, por um lado, o campo em que a investigação se integra – a fundação poética da dimensão-mensura do habitar humano – e, por outro, a possibilidade de definir existenciariamente essa dimensão sobre a base estritamente terrena – isto é, prescindindo da abertura ao divino – do conviver humano, não indiferente ao outro como eu. Penso, neste caso, que a originalidade de Marx representa uma contribuição real no âmbito da ética, que transcende o alcance do pensar heideggeriano, quer ao restringir o campo do possível (a este mundo terreno fáctico do Ge-stell), quer ao abrir o conceito heideggeriano de um ser-com-outrem neutro, indiferente à ligação afectiva específica entre os outros de carne e osso, ao ser-uns-com-os-outros compassivo ou amante, no reconhecimento da diferença de cada um no seio duma mesma vulnerabilidade. Relativamente à letra heideggeriana isso é uma novidade importante.

Penso, finalmente e em terceiro lugar, que a riqueza da proto-ética heideggeriana está, contudo, no seu carácter formal, a que nunca foge, nem sequer na sua interpretação da questão da medida no poema de Hölderlin. Não foi, decerto, por acaso que num dos seus textos precoces, em 1924, ao comunicar pela primeira vez aquilo que em 1927 seria a analítica exitenciária, menciona a ética kantiana, dizendo:

Talvez não seja casual que Kant tenha definido o princípio fundamental da sua Ética de tal maneira que dizemos que é formal. Talvez pela sua familiaridade com o ser-aí mesmo, sabia que este é o como. (GA 64: 117)

Mas o como heideggeriano não tem a forma duma prescrição, não é imperativo. O abrir-se à Quadrindade é uma mera possibilidade, que a nada de concreto obriga, limitando-se a ler, na sugestão de Hölderlin, a feliz plenitude da condição humana enquanto Dasein. Ora, essa possibilidade – enquanto acontecer da abertura – implica que a recuperação do vínculo originário ao Ser possa dar-se até mesmo no mundo de Ge-stell, a que, contudo, não podemos fugir. Há, pois, um resgate possível do vínculo com a origem: “O que é necessário é o passo atrás!”,[39] que requer a «determinação do pensar»![40] É de recordar, em qualquer caso, que, nas suas próprias palavras, talvez isso só seja acessível a “poucos e raros” e que o chegar lá tenha algo de iniciático, supondo o «preparar-se para estar disposto a manter-se aberto» ao «deus derradeiro».

Mas serão tão poucos? E tão raros? Não é o pensar per se uma alternativa à globalização, uma maneira de criar dimensões de isenção – que não de fuga – à engrenagem da com-posição tecnológica do nosso ser-com os outros? Formas há, sempre singulares e limitadas, de realizar o «passo atrás». Não conseguem, naturalmente, alterar (muito menos, de imediato) a dinâmica imparável, inerente ao paradigma Ge-stell, pelo que não podem ser politicamente válidas, não têm vigência no âmbito da res publica. O seu alcance é e permanece privado, restringido. Ou, dito de outro modo: só excepcionalmente o cuidado se exerce em plena autenticidade, no meio da incúria e desatenção quotidianas. Mas esses momentos excepcionais transformam quem deles foi capaz e, nessa medida, permitem que o instante abra um caminho de sereno distanciamento das rotinas socialmente implantadas. É essa a via de «cura»: para cada um, paciente neste mundo doente, e para o próprio mundo. Mas, tal como dizia Kant a propósito da Aufklärung[41] – se é possível conseguir salvar-se uma pessoa, não é, porém, alcançável salvar-se toda uma época.

Uma coisa permanece válida, porém, na minha leitura. Vai em sentido contrário da proposta de Marx, que, ao fim e ao cabo, procura extrair de Heidegger uma orientação para a configuração de uma «medida», isto é, para a reversão da «falta» de medida (Mass-los-igkeit). Tal como, no texto poético de Hölderlin, a condição humana aparece desenhada como a de uma não infeliz desmedida, penso que também Heidegger orienta o seu desenho do habitar poético como o de uma excepcional desmesura: porque não é obra menos desmedida que a desgraça gestéllica, o vencê-la a partir de dentro, graças ao acontecimento de um outro modo (apropriado e próprio, longamente preparado) de fazer mundo. Pois, “se o poético se propicia, é que o homem vive humanamente sobre a terra”.[42]

A possibilidade da cura é a que já de sempre se dá na forma ético-poética de ser como o «aí» (do ser), excepcionalmente, se edifica: em feliz experiência do desmedido.

Referências bibliográficas

Textos de Heidegger

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  1. Universidade de Évora
  2. O presente estudo reelabora a conferência apresentada ao III Congresso Internacional da Sociedade Iberoamericana de Estudos Heideggerianos – XX Colóquio Heidegger (Rio de Janeiro, PUC-Rio, 19-21/10/2015), subordinado ao tema: Há uma medida sobre a Terra?
  3. Ernst Jünger e o seu irmão Friedrich Georg descreveram o traço titânico da época da técnica, de que a construção e lançamento do Titannic, bem como o seu naufrágio, serve de exemplo. Veja-se Jünger, G.F., 1944: Die Titanen; e também Jünger, E., 1998: Los Titanes venideros. Nesta última obra, p. 30, podemos ler: “Gostaria de citar Hölderlin, que em Pão e Vinho fala da «idade dos Titãs», que virá [e em que] os actos serão mais importantes que a poesia, que os canta, e que o pensamento que os reflecte. […] idade muito propícia para a técnica, mas desfavorável para o espírito e para a cultura.”
  4. Cf. carta a Kästner, Agosto de 1962 (Heidegger, 1986: 51). Tratei desta questão da importância da ponte ou da inexistência de uma ponte para a compreensão do mundo grego no capítulo 8 de Arte e Técnica em Heidegger (Borges-Duarte, 2014, p. 09-212).
  5. Cf. Jonas, 1979: Das Prinzip Verantwortung.
  6. A proposta de Werner Marx tem como enquadramento a discussão acerca da construção duma ética adequada à época tecnológica, que ficou marcada pela publicação, em 1979, de O Princípio Responsabilidade. Hans Jonas, que com ele coincidira na New School of Social Research, em Nova Iorque, e que fora também discípulo de Heidegger, considera fundamental a configuração de um modelo ético que, ao contrário de Kant, se preocupe não meramente com os humanos, mas com o ambiente, não tanto com o indivíduo, mas com o colectivo, não com o próximo e presente, mas com o futuro e as gerações vindouras. Concebe, nesse sentido, o imperativo – à maneira kantiana – de acção sapiente, cientificamente esclarecida e capaz de actuar no sentido de detectar o perigo e de travar o desenvolvimento descontrolado da empresa tecnológica e das suas consequências planetárias. É em contraste com este modelo, em que se reconhecem traços gnósticos, que Werner Marx expõe o seu.
  7. “Die Herkunft der Kunst und die Bestimmung des Denkens”.
  8. “Die Frage nach der Technik”.
  9. Cf. GA 29/30, 1983: Die Grundbegriffe der Metaphysik. Welt – Endlichkeit – Einsamkeit
  10. Para a justificação da tradução de Ge-Stell por «com-posição» e a interpretação em que se enquadra, veja-se Borges-Duarte, 2014, 172 ss.
  11. Habermas, 1968: Technik und Wissenschaft als «Ideologie»
  12. Nemésio, 2003: Era do Átomo. Crise do Homem. Título publicado pela primeira vez em 1976, é hoje acessível na edição das Obras Completas, de que constitui o volume XXII, cuja paginação será referida nas citações.
  13. Nemésio, 2003; 51: Uma lei estatística é mera “verificação de saltos”, “probabilismo de chances”.
  14. Entrevista a Der Spiegel, GA 16: 673: “…dieser Vorbereitung der Bereitschaft des Sich-Offen-Haltens für die Abkunft oder das Ausbleiben des Gottes”.
  15. Cf. Trawny, 2010: Adyton. Heideggers Esoterische Philosophie, Berlin, Matthes und Seitz, 114 S. Considero a proposta de Trawny para ler os Beiträge é ousada e intempestiva, mas coerente não só com a linguagem e estilo da «segunda obra principal» de Heidegger, mas também com a evolução do seu pensamento a partir desses anos e com a forma como estruturou o aparecimento da sua Edição Integral. A ideia fundamental do Autor consiste em considerar que a filosofia de Heidegger busca o adyton, o lugar da inacessível proximidade do deus, a que só a escuta acede, e em cuja relação, resguardada do público, é possível habitar serenamente e sem violência. A via assim aberta só pode ser, na verdade, esotérica: sigilosa, insistente e oculta da esfera pública, só sendo viável aos iniciados, capazes de entender os «acenos» e de andar os caminhos (Wege, nicht Werke!) que o Mestre deixou aos «poucos e raros», que o acompanharam, mesmo de longe. Não é aqui o momento de entrar numa discussão das implicações desta tese. Mas ela faz alguma luz sobre a própria negativa heideggeriana à construção duma ética e à sua definição como morada ou lar, na proximidade do deus de Heraclito.
  16. Naturalmente, a precompreensão heideggeriana da política não é de tipo democrático, pelo que a sua concepção da intervenção se faz a nível do poder propriamente dito e não da pedagogia das mentalidades e da correlativa transformação das suas práticas.
  17. Êthos anthropô daímon. Cf. GA 9: 354.
  18. Cf. a pergunta de Beaufret, reproduzida por Heidegger na Carta (GA 9: 352-353)
  19. A aproximação da situação de «pobreza de mundo» do animal e da experiência humana do tédio, que Heidegger desenvolve em GA 29/30, é explorada por Agamben, em L’Aperto. L’Huomo e l’Animale (2002), para caracterizar o humano como o “despertar do ser vivo para o seu estar aturdido, o abrir-se, angustiante e decidido, a um não-aberto”. Neste sentido, o fenómeno do tédio, enquanto Grundstimmung, revelaria o Dasein como “o animal que aprendeu a entediar-se, que despertou do seu aturdimento e para o seu aturdimento” (Agamben, 2013: 98). A indiferença afectiva e o empobrecimento de mundo, que ela implica, não têm, pois, a esta luz, um significado meramente secundário, como consequência emotiva de uma forma de vida, ocupada com as coisas à beira das quais se desenrola. Pelo contrário, é a privação da abertura de mundo, por se ficar exposto e agarrado ao intramundano – como um animal ao seu ambiente – que impede a «construção» do mundo como tal, fazendo dele uma morada. A única possibilidade que o Dasein tem de a reverter consiste, então, no seu «despertar-se» para essa situação, abrindo-se para o não-intramundano, para o êthos, pelo «cuidado».
  20. Cauto, em época de crítica conceptual do que Kehre autenticamente significa, Marx apenas a menciona como Umschlag, expressão usada por Heidegger em 1928, nos Metaphysische Anfangsgründe der Logik im Ausgang von Leibniz (GA 26: 196), sem lhe dar um autêntico papel nesta questão que estou a situar no meramente formal. Só depois de 1989, com a publicação dos Beiträge, é possível aprofundar o significado pleno do termo em Heidegger.
  21. Cf. GA 65: 407-408
  22. Cf. Marx, 1986: 23 ss., 29-30, 65-70.
  23. Tendo aparecido, inicialmente, em prosa, integrado no romance Phaeton de Wilhelm Waiblinger (1923), “In lieblicher Bläue” é de difícil datação. Na Stuttgarter Ausgabe (Hölderlin, 1953: 372-373) aparece no tomo 2 (Gedichte nach 1800), mas é referido como zweifelhaftes pelo editor W. Beissner. Michael Franz e D. E. Sattler, responsáveis pela nova edição histórico-crítica (Frankfurter Ausgabe), situam a redacção do texto entre 1807 e 1808. 
  24. Hoje em GA 7: 189-208.
  25. O original alemão do texto, facilmente acessível, inclusive online na edição citada, será referido parcialmente, nos momentos oportunos. Reproduzo, contudo, a minha modesta tradução (incompleta) do texto comentado, para permitir a leitura orgânica do que, no desenvolvimento interpretativo, surge necessariamente entrecortado: “No doce azul, com tecto metálico, o campanário floresce. Envolve-o a gritaria das andorinhas, cerca-o o mais comovente azul. O sol eleva-se sobre ele e dá cor à chapa, mas lá no alto, ao vento, a bandeira canta suave. Se alguém descer aquelas escadas sob o sino, é uma vida suave, pois quando está tão isolada a figura, a plasticidade do homem vem ao de cima. As janelas, por onde os sinos ressoam, são como portais para a beleza, pois os portais estão ainda próximos da natureza, têm semelhança com as árvores do bosque. Mas a pureza é também beleza. No seu interior, da variedade surge um espírito sério. Mas quanto mais simples e mais sagradas estas imagens são, tanto mais, realmente, se teme descrevê-las. Os Celestes, porém, que sempre são bons, têm, como os ricos, de uma vez só virtude e alegria. Ao homem é permitido imitá-los. Pode o homem, tão molesta que é a vida, procurando-os, dizer: Eu também quero ser assim? Sim. Enquanto no coração lhe dura a amizade, a pureza, não é infelizmente que o homem se mede com a divindade. É desconhecido Deus? Está manifesto como o céu? É antes isto que creio. É do homem a medida. Cheio de mérito, mas poeticamente, reside o homem nesta terra. Nem a sombra da noite com as estrelas é mais rica, se posso dizê-lo, que o homem, de quem se diz ser imagen da divindade. Há sobre a terra uma medida? Não há.”
  26. “Solange die Freundlichkeit noch am Herzen, die Reine, dauert, misset nicht unglücklich der Mensch sich mit der Gottheit.
  27. GA 7, p. 204: “Das Wesen des Bildes ist etwas sehen zu lassen”.
  28. Hölderlin, « In lieblicher Bläue… » : “Möcht ich ein Komet sein ? Ich glaube. Denn sie haben die Schnelligkeit der Vögel; sie blühen an Feuer und sind wie Kinder an Reinheit, Größeres zu wünschen kann nicht des Menschen Natur sich vermessen.”
  29. Cf. “Das Ding”, GA 7: 180-181: “Erde und Himmel, die Göttlichen und die Sterblichen gehören, von sich her zueinander einig, aus der Einfalt des einigen Gevierts zusammen. Jedes der Vierspiegelt in seiner Weise das Wesen der übrigen wider. Jedes spiegelt sich dabei nach seiner Weise in sein Eigenes innerhalb der Einfalt der Vier zurück. Dieses Spiegeln ist kein Darstellen eines Abbildes. Das Siegeln ereignet, jedes der Vier lichtend, deren eigenes Wesen in die einfältige Vereignung zueinander. Nach dieses ereignende-lichtenden Weise spiegelnd, spielt sich jedes de Vier in sein Eigenes frei, bindet aber die Freien in die Einfalt ihres wesenhatfen Zueinander.”
  30. GA 9: 62.
  31. “das Aufschauen durchmisst das Zwischen – die Unzugangbarkeit – von Himmel und Erde. Dieses Zwischen ist dem Wohnen des Menschen zugemessen. Wir nennen jetzt die zugemessene, d.h. zugereichte Durchmessung, durch die das Zwischen von Himmel und Erde offen ist, die Dimension.” GA 7: 198 (incorporando, em itálico, a anotação g de Heidegger).
  32. Para uma comparação das suas duas traduções do primeiro estásimo da Antígona de Sófocles, com o pano de fundo das também duas traduções de Hölderlin, veja-se o capítulo 5 do meu estudo sobre Arte e Técnica em Heidegger (Borges-Duarte, 2014, p. 124 ss.).
  33. Biemel caracteriza a essência da técnica moderna, em termos nietzscheanos, como “a mais extrema potenciação do sujeito como vontade absoluta” e descreve a sua manifestação em três fenómenos – a corrida armamentista, o gigantismo das novas metrópoles e a racionalidade económica –, os quais, no seu conjunto, considera definirem-se pela “intensificação contínua, pela sua impossibilidade de parar e pelo efeito intimidatório” – numa palavra, a «desmedida». Cf. Biemel, 1988: 24.
  34. V. Marx, 1986: 53-54.
  35. Note-se a crítica implícita ao sistema jonasiano de uma ética «do futuro», edificado sobre os «imperativos» da responsabilidade. Tanto Marx como, anteriormente, Jonas partem, heideggerianamente, do reconhecimento do Perigo, como enquadramento problemático. Mas enquanto Jonas privilegia heuristicamente o medo como afecto detector, e confia, à maneira gnóstica, no conhecimento como fortalecimento da resposta ética, capaz de edificar um sistema que garanta a possibilidade de vida futura sobre a Terra; Marx, renunciando a quaisquer imperativos, defende ser a sensibilidade ao outro no seu padecer próprio, prévia e isenta de análise cognitiva e de mediação científica, que habilita o habitar autêntico na terra partilhada e, portanto, o abrir de uma possibilidade de a manter no estar-a-ser, em vez de a explorar e esgotar os seus recursos humanos e não humanos. A responsabilidade é, na ética de Jonas, a união do medo e do conhecimento. Em Marx, amor-compaixão-reconhecimento não são mais que «modelos» de uma atitude de abertura radical ao outro, com quem partilho o estar no mundo, um modo de estar desperto para aquilo que é a nossa comum «mortalidade». São abordagens de muito diferente ambição na resposta à comum herança heideggeriana e ao desafio que ela constitui. É, decerto, sintomática a fortuna da proposta ética de Jonas, no nosso mundo do controlo e da planificação, em contraste com a precária difusão da de Werner Marx.
  36. “Das älteste Systemprogramm des deutschen Idealismus”. É conhecida a dificuldade de atribuição de autoria ao texto, escrito pela pluma de Hegel, mas provavelmente redigido em conjunto pelos três amigos e colegas em Tübingen. Leia-se, a este propósito, a ilustrativa compilação de textos e posições reunidos em volume por Jamme e Schneider (1988). Adoptarei aqui a versão integrada na obra de Hegel (1979: 234-237)
  37. “… eine Ethik. Da die ganze Metaphysik künftig in die Moral fällt – wovon Kant mit seinen beiden praktischen Postulaten nur ein Beispiel gegeben, nichts erschöpft hat –, so wird diese Ethik nichts anderes als ein vollständiges System aller Ideen oder, was dasselbe ist, aller praktischen Postulate sein…” (ibid.)
  38. “Zuletzt die Idee, die alle vereinigt, die Idee der Schönheit” (ibid.)
  39. Cf. o final da conferência de Atenas, “A proveniência da Arte e a determinação do pensar”: “Passo atrás quer dizer: retroceder do pensar ante a civilização mundial, com distanciamento relativamente a ela, embora sem dela renegar, de maneira nenhuma, introduzindo-se no que houve de ficar impensado no início do pensar ocidental…” Heidegger, 1983: 147.
  40. É esta, no meu entender, a fórmula mais próxima do que poderia ser um «imperativo». Não é fácil contornar a tentação de traduzir o ético em formulações deônticas, de tipo kantiano, apesar de Heidegger, manifestamente, não lhe ter sucumbido. Jonas, que elabora o seu projecto explicitamente em contraste crítico com Kant, constitui, em contrapartida, um bom exemplo dessa tendência. Até mesmo von Herrmann (2006: 6) interpreta a possibilidade duma «ética historialmente propícia», brotando do Ereignis, traduzindo-a num novo imperativo categórico: “Age de tal modo que erijas em máxima do teu querer o respeito pelo estar a ser de cada ente e pelo seu não-estar-encoberto [Unverborgenheit], e que ela te sirva de legislação universal.” A minha sugestão a propósito do «passo atrás» não vai no sentido da sua aceitação como a de um dever implícito, com a correspondente carga de obrigação, mas como a mera indicação de um caminho e da possibilidade que nele pode encontrar-se.
  41. Cf. Kant, 1968, p. 147: “É, por conseguinte fácil em indivíduos particulares estabelecer o esclarecimento [Aufklärung] mediante a educação […] Porém, esclarecer uma época é muito penoso e demorado, pois encontram-se muitos obstáculos exteriores, que em parte proíbem esta educação e em parte dificultam-na.”
  42. GA 7, p. 208: “ereignet sich das Dichterisch, dann wohnet der Mensch menschlich auf dieser Erde”.


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